Síntese estrutural
GAA é sintetizada como uma glicoproteína de 110 kDa, que é dirigido ao lisossoma através do receptor manose-6-fosfato e sofre no compartimento endossômico tardio/lisossômico uma série de eventos de processamento proteolítico e N-glicano para produzir uma forma ativa madura composta de quatro peptídeos bem associados19,20. Como a cristalização da forma comercial precursora do Myozyme® rhGAA (Q57-C952) não permitiu a difusão de cristais além de ~7 Å e os preditores de desordem protéica21 indicaram a presença de regiões de peptídeos desordenados, realizamos a proteólise in situ com α- quimotripsina para remover putativos loops superficiais flexíveis que dificultavam a formação de contatos cristalinos produtivos. O tratamento proteolítico produziu um polipéptido de ~5 kDa de massa inferior ao precursor rhGAA (Fig. 2a), que se cristalizou prontamente. Isto nos permitiu coletar os dados de difração estendendo-se até 1,9 Å e resolver a estrutura do rhGAA por substituição molecular (Tabela 1). A forma digerida proteolítica teve atividade comparável à do precursor (2,34 ± 0,06 e 2,26 ± 0,16 U mg-1 para as formas precursora e madura, respectivamente), indicando que o tratamento com α-cimotrípsiasina não alterou a funcionalidade do rhGAA.
A estrutura cristalina do rhGAA corresponde à forma madura da placenta humana GAA e rhGAA20 (Fig. 2b), sugerindo que o tratamento com α-chymotrypsin permitiu a remoção das regiões protease-labílicas (Q57-T80, G116-M122, R199-A204 e A782-R794) de uma forma comparável à maturação proteolítica ocorrida in vivo. A arquitetura geral da rhGAA é semelhante à da família humana de homólogos GH311 da glicosídeo hidrolase, as enzimas de fronteira intestinal maltase-glucoamilase (MGAM)22,23 e sucrase-isomaltase (SI)24 (Fig. 2c e Suplemento Fig. 1). Um domínio N-terminal tipo P é seguido por um domínio de folha β, o catalítico (β3/α)8 barril com duas inserções após as cordas β β3 (inserir I) e β4 (inserir II), e proximal e distal β-sheet domínios no C-terminus. A forma precursora do rhGAA contém ~14 kDa de carboidratos e sete sítios de glicosilação foram previstos e caracterizados20. Observamos estruturas de glicosilano de vários comprimentos para cinco deles na estrutura cristalina, notadamente em N140, N233, N390, N470 e N652 (Fig. 2c e Suplemento Fig. 2). Detectamos diferença residual de densidade de elétrons em N882, insuficiente para modelar uma estrutura de glucano, e não observamos diferença de densidade de elétrons próxima a N925.
Local ativo e ligação de inibidores
A bolsa estreita de ligação do substrato de rhGAA está localizada próxima às extremidades do terminal C do domínio catalítico (β/α)8 e moldada por um laço do terminal N do domínio da folha β e ambas as inserções I e II (Fig. 2c). As enzimas familiares GH31 realizam a catálise através de um mecanismo clássico de reação de duplo deslocamento Koshland com retenção da configuração anômala de carbono no produto. A partir da caracterização precoce do sítio catalítico do GAA25 e por homologia com membros mecanicamente dissecados da família GH3126,27, o nucleófilo catalítico e ácido/base podem ser atribuídos a D518 e D616, respectivamente. Para se ter uma idéia da interação do rhGAA com o documentado chaperone farmacológico 1-deoxinocirimicina16,28 e sua derivada N-hidroxietil-deoxinocirimicina29 (DNJ e NHE-DNJ, respectivamente), nós embebemos os cristais de rhGAA com esses inibidores de iminosacarídeos ativos e obtivemos para ambos os complexos dados de difração com resolução de 2,0 Å (Tabela 1). DNJ liga-se em uma conformação 4C1 no subsite -130 de ligação do substrato e é estabilizado por ligações de hidrogênio às cadeias laterais de D404, D518, R600, D616, e H674. Outras interações estabilizadoras são fornecidas por contatos hidrofóbicos com W376, I441, W516, M519, W613 e F649 (Fig. 3a, b). Para além de uma inclinação de 20° na cadeia lateral do W376, não ocorrem grandes alterações conformacionais na ligação DNJ no local activo do rhGAA. Este não é o caso da ligação do NHE-DNJ, que adota a mesma postura do DNJ, mas onde o substituto hidroxietil induz mudanças conformacionais substanciais nas cadeias laterais de M519 e W481 (Fig. 3c, d). Nesta conformação liga-induzida, o resíduo rhGAA W481, localizado na ponta do inserto I, estabelece uma interação estabilizadora com o substituto hidroxietil do NHE-DNJ. Alterações conformacionais semelhantes podem ser observadas na ligação do NHE-DNJ à subunidade N-terminal do MGAM (NtMGAM)31 (Suplemento Fig. 3a).
Reconhecimento e especificidade do substrato
Para obter uma percepção do reconhecimento do substrato por rhGAA, adquirimos os dados de difração estendendo-se até 2,45 Å resolução para um cristal rhGAA embebido em acarbose, um substrato analógico não-polimerizável α-1,4-tetrasacarídeo (Tabela 1). Neste complexo, o anel de valienamina alojado no subsite -1 adota uma conformação de meia-cadeira 2H3, mas apesar desta diferença conformacional em relação ao DNJ ligado na conformação de meia-cadeira 4C1, o padrão de ligação de hidrogênio no subsite -1 é essencialmente idêntico para os dois compostos (Fig. 3e, f e Suplemento Fig. 3b). O nitrogênio não hidrolisável “interglicosídico” ocupa o centro catalítico e está ligado ao ácido catalítico/base D616 pelo hidrogênio. A fracção 6-deoxiglucosil no subsite + 1 estabelece através dos seus grupos 2 e 3-hidroxil ligações de hidrogénio com o conservado R600 e com D282 proveniente de um laço no domínio N-terminal β-sheet. Embora não conservados em sequência, os resíduos deste laço interagem invariavelmente com os ligandos de hidratos de carbono em todas as estruturas cristalinas disponíveis dos membros da família GH31. A unidade de maltose de acarbose em subsites + 2 e + 3 não faz nenhuma interação direta com o rhGAA e é bastante estabilizada por interações de embalagem de cristal e um contato mediado por água com a cadeia lateral do W618, localizada na borda da bolsa de ligação do substrato. Esta escassez de interações sugere que rhGAA possui apenas dois locais produtivos de ligação do substrato, os sub-locais -1 e + 1, mas, curiosamente, a parte de maltose acarbose ligada a rhGAA adota a mesma postura geral que quando ligada ao NtMGAM22 sugerindo um papel funcional também para os sub-locais + 2 e + 3 em rhGAA (Fig. Complementar. 3c).
O glicogênio é um grande polímero acumulado por cadeias lineares de α-1,4-linked resíduos de glicose transportando α-1,6-linked ramos. No citosol a partícula de armazenamento de energia é degradada pela ação concomitante da glicogênio fosforilase e de uma enzima de detritos. Dentro do lisossoma, nenhuma enzima de detritos está presente e GAA deve assegurar a hidrólise de ambas as ligações α-1,4- e α-1,6-glycosidic. Entretanto, rhGAA mostra clara preferência pela ligação anterior, já que a constante de especificidade na maltose é 32 vezes maior quando comparada à constante de especificidade na isomaltose (Tabela Complementar 2). Para descobrir a base estrutural para a especificidade do substrato duplo, tentamos embeber os cristais de rhGAA com o tetrasacarídeo não hidrolisável glucopiranosil-α-(1,6)-thio-maltotriose. No entanto, esta abordagem falhou, muito provavelmente devido aos contactos cristalinos que impedem a acomodação do tetrasacarídeo, que em virtude do α-1,6-linkage é ligeiramente mais longo do que acarbose. Este último foi observado que mal se encaixa na fenda de ligação do substrato e se aproxima de uma molécula relacionada com a simetria (Fig. 3e). Derivamos um dissacarídeo α-1,6-linked ligado dentro do site ativo de rhGAA por uma superposição estrutural de rhGAA com o domínio catalítico (β/α)8 de Blautia obeum GAA em complexo com isomaltose32 (rmsd de 1,50 Å para 318 posições Cα alinhadas). O modelo revela que não ocorre nenhum impedimento estéreo pela acomodação de uma ligação α-1,6 entre o subsite -1 e + 1 e que são mantidas ligações produtivas de hidrogênio entre a grupo da glicopiranose no subsite + 1 e D282 (Fig. 4a, b). Entretanto, devido ao aumento do comprimento da ligação α-1,6 em relação a uma ligação α-1,4, a ligação estabilizadora de hidrogênio com R600 é enfraquecida, o que pode explicar a menor atividade da enzima nos ramos ligados a α-1,6.
O domínio secundário de ligação do substrato
No complexo rhGAA-acarbose, pudemos observar a molécula acarvosina de uma segunda molécula de acarbose alojada numa bolsa dentro do domínio N-terminal tipo P, situada na mesma face do rhGAA onde se encontra o local ativo e a 25 Å de acarbose ligada a ele (Fig. 4c). A moiety valienamina liga hidrogênio-bonds com seus grupos 4 e 6-hidroxilo ao nitrogênio e oxigênio da cadeia principal de C127, o oxigênio da cadeia principal de A93 e a cadeia lateral de D91. Outras interações estabilizadoras são proporcionadas pelo empilhamento das interações com P125 e W126. P125 e D91 são conservados ou substituídos por substituições conservadoras na família de enzimas GH31 que compreendem um domínio tipo P de trifoil (Suplemento da Fig. 4a). Adjacente ao local secundário de ligação dos hidratos de carbono, o laço superficial G116-M122 tinha sido aparado por tratamento proteolítico. É concebível que a remoção do segmento G116-M122, exclusivo dos representantes lisossómicos da família GH31 (Suplemento Fig. 4a, b), possa contribuir para a formação da bolsa secundária de ligação do substrato. Poder-se-ia prever que o local secundário de ligação de ácaros em rhGAA representa um local genuíno de ligação do substrato, possivelmente melhorando a processabilidade da enzima. Este local também poderia representar um farmacóforo para a triagem em silico para novas conchas farmacológicas. Mais notadamente, um trissacarídeo derivado de acarbose está ligado ao domínio N-terminal da família GH31 α-1,4-glucan lyase de Gracilariopsis lemaneiformis 33 em uma posição próxima ao local secundário de ligação do substrato aqui descrito (Fig. 5 Suplementar).
N-acetilcisteína é uma chaperone farmacológica alostérica
A conhecida droga farmacêutica N-acetilcisteína (NAC) tem demonstrado atuar como chaperone farmacológica alostérica aumentando a estabilidade dos GAA e rhGAA endógenos mutantes utilizados para ERT, sem afetar a atividade catalítica18. Para aproveitar o potencial terapêutico do NAC para a doença de Pompe através de estudos estruturais, buscamos a estrutura cristalina do rhGAA em complexo com o NAC. A estrutura de resolução 1,83 Å do complexo obtida por experimentos de imersão de cristais (Tabela 1), revela dois locais de ligação do CNA distantes do local ativo (Fig. 4d, e), fornecendo evidências estruturais de que o CNA é de fato um acompanhante alostérico, como previsto por estudos funcionais18. Verificamos, através de ensaios de atividade e fluorimetria de varredura diferencial, que o CNA estabiliza igualmente bem o rhGAA e a enzima proteolítica amadurecida produzida neste estudo, e que a chaperone é específica para GAA, já que o CNA não tem efeito estabilizador sobre um homólogo GH31 do arroz (Fig. 6a, b e Tabelas Suplementares 3 e 4). Na estrutura do complexo rhGAA-NAC, uma molécula NAC, designada como NAC1, está localizada a cerca de 30 Å do site ativo, na interface entre o barril (β/α)8 e o domínio distal β-sheet (Fig. 4d). O NAC1 liga-se ao carboxil da cadeia principal de H432 através de seu amido nitrogênio e a função carboxil faz um contato mediado de água com a cadeia lateral de D513. Os grupos Cβ-Sγ e acetyl estabelecem interações de empilhamento com o grupo guanidina de R437 e o laço G434-G435, respectivamente. Um segundo, parcialmente (75%) ocupado pela molécula NAC (NAC2), está alojado na interface entre o barril (α/α)8 e o domínio proximal da folha β a uma distância de 25 Å do site ativo (Fig. 4e). A função carboxilo do NAC2 faz um contato mediado pela água com o oxigênio da cadeia principal de L756, a pilha de tiol contra a cadeia lateral do Q757 e a pilha do grupo acetil contra a cadeia lateral do H742. As duas moléculas de NAC estabelecem menos e mais fracas interacções com rhGAA do que os chaperones DNJ e NHE-DNJ. Isto reflete as maiores concentrações de NAC necessárias para a atividade de chaperone (mM vs, µM) como exemplificado pelo K D de 11,57±0,74 mM que obtivemos por fluorimetria diferencial de varredura e pelo K i de 3,4 e 3,0 µM para DNJ e NHE-DNJ, respectivamente18,29. Uma curva de saturação sigmoidal que melhor se adapta aos pontos experimentais suporta os locais de ligação alostáricos totalmente (NAC1) e parcialmente (NAC2) ocupados (Suplemento Fig. 6c). As interações de empilhamento estabelecidas entre os grupos acetil do NAC1 e NAC2 e rhGAA devem contribuir significativamente para a energia de ligação, já que aminoácidos relacionados ao NAC, tais como N-acetilserina e N-acetilglicina têm igualmente um efeito estabilizador sobre o rhGAA, enquanto os homólogos não acetilados não têm efeito18. A estrutura do complexo rhGAA-NAC mostra uma diminuição nos parâmetros de deslocamento térmico atômico dos resíduos ao redor dos locais de ligação do NAC em relação ao rhGAA não ligado, apontando para uma função estabilizadora global inter-domínios impulsionada pelo NAC (Suplemento Fig. 7a-d). No cristal NAC aparece também para exercer um efeito anti-oxidante, pois o resíduo C938 é oxidado à forma de ácido sulfênico em todas as estruturas cristalinas aqui descritas, exceto na estrutura do complexo rhGAA-NAC (Suplemento Fig. 8a, b).
NAC e iminosacarídeos apresentam diferentes perfis de acompanhantes
Algumas mutações que levam à doença de Pompe são sensíveis tanto ao NAC quanto aos iminosacarídeos DNJ e NB-DNJ, enquanto outras são visadas especificamente por um ou outro acompanhante farmacológico16,17,18. A grande maioria dos mutantes GAA que respondem à atividade de chaperone dos iminosacarídeos estão localizados ao alcance do local ativo ou em elementos estruturais que contribuem para a sua arquitetura global. Em pacientes com Pompe, fibroblastos e modelos de rato, os mutantes GAA mais sensíveis ao NAC (A445P, Y455F e L552P)18 estão localizados nas inserções I e II, onde os resíduos correspondentes do tipo selvagem contribuem para a estabilização do domínio. A445 juntamente com F487 define os limites da pastilha I, e o mutante A445P provavelmente desestabiliza todo o andaime da pastilha I (Fig. 9a Suplementar). A hidroxila de cadeia lateral de Y455 no insert I interage com um longo loop do domínio catalítico enquanto a cadeia lateral de L552 no insert II faz interações hidrofóbicas com resíduos do domínio N-terminal β-sheet (Suplemento Fig. 9b, c). Os respectivos mutantes Y455F e L552P têm certamente um efeito desestabilizador geral, que é claramente resgatado pelo NAC. Assim, a ação chaperone dos iminos açúcares pode ser considerada como um resgate conformacional de locais ativos com perturbações estruturais, enquanto o efeito do chaperone alostático NAC parece ser devido à estabilização das flutuações conformacionais globais ou locais.